Alguns dos amigos que aqui vêm sabem que trabalho com pacientes psiquiátricos. Tarefa árdua, mas muito prazerosa. Optei por expor aqui uma série falando um pouco sobre meus pacientes, e inauguro com um dos casos que mais me sensibiliza na minha profissão de enfermeira. É o caso do Adão (ficou longo, mas a história é bonita, vale a pena ler, não sejam preguiçosos! rsrsrs) – ele, até ano passado, era um homem barbudo, com o cabelo enorme, obeso mórbido, que andava nu, e que era pretim-retinto pelo pó de asfalto, pois vivia na rua. Não permitia que ninguém se aproximasse e sempre dava as costas a quem tentava puxar uma conversa. Andava com um cobertor, que usava durante a noite, cuidadosamente enrolado por cima da cabeça (como se fosse uma trouxa).
Foram feitas várias tentativas de abordagem de Adão, mas todas sem sucesso. Ele, além de ser morador de rua, também é portador de um transtorno mental – esquizofrenia.
Certo dia, o Serviço de Abordagem de População de Rua da Prefeitura iniciou nova abordagem a Adão e conseguiu trazê-lo ao CERSAM. Me lembro que quando chegou, ele nem me deu confiança – fez comigo exatamente como fazia com as pessoas que tentavam abordá-lo na rua – me deu as costas e me deixou com cara de tacho! Optamos por mantê-lo no CERSAM durante o dia e a noite também, até estabilizar o quadro. Adão falava sozinho; delirava, recusava-se em dormir na cama; à noite permanecia dormindo sentado num dos bancos da recepção, ou no chão, e urinava em qualquer lugar após fecharmos a porta; estava hipertenso, com risco de sofrer um AVC ou infarto. Com muito custo, após 15 dias, conseguimos convencê-lo de cortar o cabelo (ou melhor, raspar, pois os cabelos eram puros nós e sujeira) e fazer a barba. Não sentava-se no refeitório; e sempre comia usando as mãos – recusava talher. Não era hostil, mas isolava-se. Respeitei suas vontades e seu espaço no início. Porém eu precisava me aproximar para conseguir tratá-lo, mas como fazer isso?

Desde os primeiros dias percebi que Adão sempre catava bitucas de cigarro pelo chão. Juntava todas em um maço velho e amassado; depois ele pedia uma folha de papel e juntava todo o fumo restante dessas bitucas, formando um cigarro. Como sou fumante, olhei pro meu maço e pensei: “É com isso aqui que vou me aproximar”. Ofereci-lhe um cigarro; ele aceitou e agradeceu, mas ainda manteve-se distante. Em outros dias eu lhe arrumava 2 ou 3 cigarros; até que um dia ofereci-lhe um maço – ele já me olhou diferente, agradeceu novamente e até esboçou um sorriso. Aos poucos puxo uma conversa daqui, outra conversa dali, mas ele sempre colocando limites em suas respostas.
Vinte dias se passaram e Adão já não suportava mais ficar dia e noite no CERSAM. E quando o pessoal que o trouxe vieram visitá-lo, ele deu um ultimato: “Vocês hoje só saem daqui se me levarem pro lugar de onde vocês me buscaram; “quero dormir olhando pras estrelas, como sempre fiz”. Momento delicado. Ele estava irredutível – queria ir embora e ponto final. Combinei com ele o seguinte: que ele poderia voltar para a rua, desde que na manhã seguinte aceitasse ser buscado pela nossa kombi – passaria os dias conosco e as noites na rua dormindo “olhando para as estrelas”. Ele concordou, mas no dia seguinte não cumpriu o trato. Pensei: perdemos o caso; mas mesmo assim insisti na busca diária no local onde ele foi deixado, na esperança que aparecesse. E qual não foi a minha surpresa, dois dias depois, Adão cumpriu sua parte; estava lá à espera da Kombi. Fiquei numa alegria sem fim. No início, ele mesmo definiu sua freqüência no CERSAM (informalmente): duas vezes na semana; depois passou a vir três e assim por diante. Numa de nossas conversas perguntou meu nome (pela terceira vez), e com aquele vozeirão de Tim Maia, disse: “Dra. Jacqueline, você é legal! Você é maneira! Eu cri na senhora e não me arrependi! A Sra. disse que eu poderia voltar a noite pra dormir olhando pras estrelas, se eu viesse ficar o dia aqui, e a senhora cumpriu o combinado. A Sra. é maneira! Agora eu não perco mais isso aqui de vista”. Me senti tomada por uma satisfação enorme; indescritível – o vínculo ao CERSAM estava feito!
À medida que freqüentava o CERSAM e aceitava a medicação, Adão estabilizava o quadro e revelava um pouco mais de sua história, mas não me dizia seu nome verdadeiro. Ele nasceu no Espírito Santo, depois foi morar próximo à Governador Valadares; entende quase tudo de plantação de feijão e arroz – veio para BH com a família (irmãos e pais), mas não sabe onde eles estão. Adão fala muito bem, apesar de sua longa trajetória na rua, e de usar algumas gírias, conjuga os tempos verbais muito bem. Sabe ler e escrever. É educado e gentil. Não se envolve em confusões dentro do CERSAM, pelo contrário – evita-as a todo custo. Diz que tem uma irmã que também é moradora de rua, mas não sabe onde ela está, e que tem um irmão que foi “mais estudado e que venceu na vida; ele tem uma casa”; conta que o irmão mora naquela região por onde ele anda. Mas que esse irmão, apesar de já tê-lo visto na rua, nunca se aproximou dele. Adão se lembra do endereço. Fomos com ele até a rua onde indicou, mas ele não reconheceu a casa, e no número que ele fornece, não existe o irmão dele.
Meses mais tarde, Adão me fala seu nome todo: “Me chamo B.T.S, nasci no dia tal, mês tal e ano tal e na cidade tal; estudei na Escola X. O nome da minha mãe é fulana de tal. Fomos conferir junto ao Instituto de Identificação pelas impressões digitais – e é verdade; ainda descobrimos mais – Adão já havia cumprido pena por homicídio. Procuramos informações na cidade onde ocorreu o fato; os moradores mais antigos relataram para a assistente social que se lembravam de um rapaz, com o nome dele, que teve a primeira crise na juventude, e que nessa crise acabou assassinando um homem; e por causa disso, e por pressão dos moradores locais, ele e os pais se mudaram para BH em busca de tratamento. E ele me contou com detalhes como tudo aconteceu: diz que usou uma barra de ferro, mas que foi para se proteger, pois o homem (deu o nome) o provocou muito, ofendeu e o agrediu. Ele disse que não queria matar, mas que o pior acabou acontecendo. Conta que cumpriu pena; ele diz: “fui amarrado, com as mãos pra trás! Fiquei na gaiola; preso na gaiola – 9 meses, mas já cumpri minha pena”; e repete várias vezes: “fiquei amarrado, com as mãos pra trás – fiquei preso na gaiola feito passarinho”.
Ainda há lacunas de sua história que não conseguimos preencher: o que aconteceu com a família de B.T.S? Onde estarão? Como ele foi parar na rua? – essas e outras perguntas estão ainda sem respostas. Foi providenciada foto e carteira de identidade para B.T.S. , e hoje Adão só é Adão para os transeuntes – mas perguntei a ele: “se você é B.T.S, por que então você atende quando lhe chamam de Adão? Ele responde: “Porque esse é o nome que me dão na rua!” (já que tinha o hábito de andar nu pelo viaduto da Lagoinha e imediações) “e pra não ser mal educado, eu atendo quando me chamam assim!” Hoje ele quase não fala sozinho, não observamos os delírios de antes, usa o banheiro como todos (e adora disparar a descarga, rsrsrs), só anda vestido com calça e blusa, de barba feita uma vez na semana, cabelo aparado mensalmente, de banho tomado (mas quando recusa, não há quem o convença), de vez enquando, pede para cortarmos suas unhas, sempre come usando talher e senta-se à mesa, mas ainda gosta de dormir na rua, olhando para as estrelas, e ficar com seu cobertor enrolado na cabeça.